02/12/2018

TransEspinhaço #1: Morro do Camilinho x Lapinha da Serra

Durante muito tempo sonhei com uma trilha longa pela Serra do Espinhaço, seja no formato de travessia ou mesmo um circuito. Depois de perambular bastante pela região meridional da cordilheira, na região mais conhecida como Serra do Cipó, um caminho foi ficando evidente para mim. Então, depois de muito estudo sobre cartas topográficas, imagens de satélite e rotas já realizadas, fui a campo no feriado de Finados.

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O fator primordial para a escolha do roteiro foi o quesito logística, como o tempo era ligeiramente curto, não dava para gastá-lo na tentativa de chegar ou sair de povoados isolados. Por isso a trilha tem início “no meio da BR”, num local conhecido como Morro do Camilinho, embora a localidade que consta na carta seja Contagem, no município de Gouveia. Já o fim é numa estrada de acesso a um pequeno povoado da borda oeste da Serra do Espinhaço, com grande fluxo de visitantes nos feriados: trata-se de Lapinha da Serra, no municípío de Santana do Riacho.

1º dia: Morro do Camilinho x Cabeceira do Córrego do Bicho

O ônibus deixou a rodoviária de BH pouco depois da meia-noite, tendo como destino Diamantina. Logo no embarque perguntei ao motorista mais ou menos quanto tempo levaria para chegar ao local de desembarque, para que eu pudesse descansar com um mínimo de interrupção, mas ele não sabia rs. A viagem correu tranquila, mas só consegui tirar alguns cochilos picados. Por volta das 04:20 desembarco no Morro do Camilinho, próximo às quatro torres eólicas solitárias, instaladas no alto da serra.

Com o dia ainda por clarear, pensando em não gastar lanterna e também em tentar descansar um pouco mais, resolvo ficar no, bem abrigado, ponto de ônibus. Em vão tentei tirar um cochilo, mais os poucos veículos que passavam pela BR não me davam sossego. Então, às 05:02, sob nuvens rosas e laranjas, decido iniciar logo os 75k que me separavam do ponto final.

Desço algumas centenas de metros pela BR-259, sentido Diamantina, até chegar à estradinha que desce em direção ao Rio Paraúna. Em declive, neste início a caminhada é um pouco na inércia, tendo em vista que tentava despertar da noite mal dormida. Vou descendo pelas cabeceiras do Córrego Contagem, num vale encaixado entre as Serras do Indaial e do Barro Preto. A estradinha dá acesso a alguns sítios e fazendas da região, bastante cascalhada e em condições medianas.

Seguindo pela estradinha logo avisto um senhor, algumas centenas de metros a minha frente, acompanhado de dois cachorros. Que coisa boa deve ser uma caminhadinha matinal por ali. Depois de alguns quilômetros ele resolve voltar e nossos caminhos se cruzam, ele parece um pouco curioso ou talvez sem entender o que eu fazia por ali com uma mochila gigante nas costas.

Passo algumas vezes pelo Córrego Contagem, que cruza a estrada por algumas vezes, e também por um sítio arqueológico que leva o nome do córrego, mas não vejo qualquer pintura. Depois de 6.5km, deixo a estradinha em favor de uma trilha que segue pela direita, evitando uma subida mais acentuada e algumas voltas que a estradinha dá. O capim beira trilha estava bem úmido, já que havia chovido um pouco durante a madrugada e o sol ainda não iluminava o fundo do vale. Às 06:42 cruzo um afluente do Córrego Contagem, mais a frente a trilha se aproxima da mata galeria e a trilha vai ficando mais suja, molhando ainda mais minha calça.

Como num passe de mágica, a trilha suja se tranforma em uma trilha ampla recém roçada, e logo chego intercepto a estradinha. Menos de um quilômetro depois, uma bifurcação: à esquerda a estradinha segue direto para o Paraúna; à direita ela vai em direção à Fazenda Prata, sendo necessário tomar uma trilha discreta para interceptar a estrada novamente. Opto pela segunda opção, para fugir um pouco da estradinha, mas não há muita vantagem em tempo ou distância em qualquer das opções.

Quando volto à estradinha ela já está em um declive acentuado, que parece ser complicado para um carro de passeio subir. Por um terreno cascalhado vou descendo rapidamente e logo chego próximo ao Rio Paraúna. Tinha a opção de seguir por uma estradinha à esquerda para cruzar o rio pelo leito, mas, devido ao início da estação chuvosa, essa opção não parecia muito prudente. Sigo pela direita em direção à ponte e, quando consigo ver o rio, percebo que a decisão de continuar por ali foi acertada, já que a água cobria boa parte do leito de um rio que costuma ostentar grandes bancos de areia.

Depois de 12.5km, às 7:51 chego à ponte sobre o Rio Paraúna, que não está das mais conservadas. Ali paro por 30 minutos para dar uma descansada e uma apreciada no caudaloso Paraúna, que mais adiante forma uma pequena represa. O Paraúna é um rio típico do Espinhaço, leito largo e muitos bancos de areia, mas a água estava meio barrenta, não tão atrativa para o banho.

Rio Paraúna

Após o descanso subo alguns metros pela estradinha, agora já bem judiada, e logo saio por um caminho à esquerda, um atalho para interceptar a trilha e evitar a barriga que a estrada dá. Vou subindo por um caminho amplo, uma boa fonte de água escorre à esquerda, a poucos metros da trilha. A subida vai ficando mais acentuada e o que devia ser um projeto de estradinha vai ficando bem ruim, com muito cascalho.

Numa parte mais alta do terreno intercepto um caminho mais consolidado que vem do oeste, vou caminhando por campos rupestres, um trecho com muito cascalho que parece ser utilizado por motos de trilha. Adiante, em uma bifurcação, tomo o caminho da direita, que dá uma guinada para o sul e avança pelo vale do Córrego do Bicho. O caminho da esquerda desce em direção ao encontro do Bicho com o Rio Paraúna.

A subida vai ficando mais suave e logo chego ao Córrego da Picada, afluente do Bicho com água boa e cristalina. A partir daí a trilha vai se aproximando, lentamente, do leito do Córrego do Bicho, por um leve aclive. Numa baixada escuto o barulho de alguns cachorros e um cavaleiro sai a galope da matinha, mas rapidamente o perco de vista. Acho que nem me viu. Cruzo dois pequenos afluentes e às 9:35, depois de percorrer 17km, chego na beira do encachoeirado Córrego do Bicho.

Quedinhas do Bicho

O sono estava matando, então resolvo esticar o isolante numa das sombras e tirar um cochilo por ali. Algumas formigas e mutucas insistiram em incomodar, mas consegui descansar um pouco. Depois um rápido mergulho nas águas barrentas do Bicho. Com a chuva dos dias anteriores o córrego estava bem volumoso e barulhento. Um pouco de refresco para o calor, já que o sol botava as asinhas de fora depois de alguns dias nebulosos em Minas.

Às 10:59 retomo a caminhada, já em melhores condições, mas não totalmente recuperado da noite sem dormir. Saio do córrego do Bicho por uma trilha no sentido sudoeste, que logo se transforma numa forte subida, com muitas pedras soltas. Chego a um campo mais elevado e avisto outra bela cachoeira do Bicho. Pensei em fazer mais um ataque, mas teria que atravessar um trecho de nascente, que com certeza estaria um charco pela chuva dos dias anteriores. Deixei para uma próxima oportunidade, quando passar naquelas bandas ali com mais tranquilidade.

A trilha vai desviando do trecho de nascente, passando bem próximo ao paredão rochoso. Os campos vão ficando para trás, dando início a um trecho de cerradinho, que acompanha o Córrego do Bicho. A trilha que até então era de fácil navegação, se transforma num emaranhado de caminhos, já que tem muito gado solto na região. Decido por seguir mais próximo da mata galeria do Bicho, evitando ao máximo o terreno ondulado nas cotas mais altas.

Às 11:47 passo pelo Rancho do Bicho, na casa somente uma pessoa, pelo menos à vista. Os cachorros me denunciam e vão pra cima de mim. O senhor percebe a minha presença, acalma os cachorros e pergunta lá da casa: “Sozinho? Animado hein!”. Passo pelas tronqueiras e continuo pelo cerradinho. Este trecho é longo e cheio de afluentes que correm na transversal. Caminhando próximo ao Córrego do Bicho fica mais fácil de encontrar a passagem pelos afluentes, que na maioria das vezes é uma só, já que esses riachinhos costumam ser cercados e contar com uma viçosa vegetação. Tirando uma passagem mais funda, que exigia alguma peripécia para cruzar o riachinho sem tirar as botas, todos os outros afluentes foram fáceis de cruzar.

Depois de muita caminhada em direção às cabeceiras do Bicho, surgem no horizonte alguns eucaliptos, que com certeza estariam nos arredores do Rancho do Adão. O fim do primeiro dia estava próximo! Após a passagem pelo último afluente, que tinha um bom volume de água, inicio uma subida moderada pelo cerrado. Passo por uma pequena porteira e retorno aos campos. Cada vez mais próximo do rancho.

Às 14:29, com 28,2km caminhados, passo pela porteira do rancho, seguindo por algumas centenas de metros a estradinha que liga aquele local com o resto do mundo. Não vejo ninguém por lá. Na parte mais baixa do terreno, aproveito a sombra de um eucalipto e um tronco caído para sentar um pouco e descansar as pernas, que já sentiam a desgastante jornada.

Campos na cabeceira do Córrego do Bicho

Uma picape aparece no rancho e, instantes depois, resolvo prosseguir, pois a área de acampamento estava próxima. Passo por uma baixada ligeiramente alagada, logo após dou uma guinada para a direita, voltando a caminhar no rumo S-SE. A trilha agora é o rastro de algum veículo que passa com alguma frequência por ali. Cruzo uma tronqueira e sigo algumas centenas de metros pela estradinha, até que a deixo em favor de uma trilha um pouco mais discreta que seguia pela parte baixa do terreno, próximo ao fundo do vale. Alguns minutos mais tarde chego ao local onde havia previsto o acampamento, um trecho de campo próximo a um afluente do Córrego do Bicho.

A água escorria pelas rochas em bom volume, embora deva secar, ou quase isso, no período de estiagem. Havia também um pequeno poço, local ideal para tomar banho e se refrescar um pouco do calor que fazia naquela tarde. Para oeste, poderosas nuvens prometiam uma chuva no final da tarde.

Após montar a barraca e de tomar um banho no pequeno poço, tiro alguns cochilos recuperadores até o final da tarde, quando resolvo fazer a janta. No cair da noite uma verdadeira orquestra sapônica deu as caras por lá. De resto muito descanso, alguns relâmpagos e uma chuva fraca durante a madrugada.

Neste dia caminhei 29.6km.

2º dia: Cabeceira do Bicho x Poço do Soberbo

Gostei da experiência de começar a caminhar cedo e repeti a dose. O GPS despertou às 5:30. Sem preguiça, pois havia descansado bastante, mas com alguma dor na panturrilha, rapidamente desmontei a barraca, tomei café e ajeitei as tralhas na cargueira. Fiz meu alongamento usual e às 6:29 deixei o local de acampamento.

A manhã estava bem agradável, bem fresca e algumas nuvens que davam a pinta de desaparecer a qualquer momento. Sigo caminhando em direção à nascente do Córrego do Bicho, que estava ali próximo. Avanço por trilhas sujas, que denotam pouco movimento. Passo por alguns trechos de nascente, com capim rebelde um pouco mais alto, mas é fácil observar o sentido da trilha.

Principais companhias durante a caminhada

Vou acompanhando de perto o Córrego do Bicho, que de córrego tem só o nome, já que neste trecho da cabeceira há pouca ou nenhuma água superficial. Após 1.500 metros começo a visualizar uma cerca, referência para o ponto de subida da vertente que está a minha direita. Vou me deslocando para a direita, por um trecho sem trilha consolidada mas com vegetação bem rente ao solo. Cruzo a cerca de arame farpado com alguma tranquilidade e passo a subir por uma vertente bem cascalhada, até interceptar a trilha mais acima.

Uma trilha discreta me leva ao topo desse patamar da Serra do Cipó. Na parte mais elevada há um trecho chato de cerrado, com muitas trilhas para todos os lados e algumas opções que terminam abruptamente. Numa pequena capoeira perco o rastro da trilha e perco alguns minutos explorando até achar o caminho certo. Logo o trecho encardido de cerrado fica pra trás e tenho os campos característicos da Serra do Cipó pela frente, proporcionando uma navegação bem mais simples e suave. No horizonte o visual de serras distantes, ainda anteriores ao ponto em que pretendia acampar.

Cruzo com alguns bois e vacas pelo caminho, que sempre se afastam com a minha chegada, mas depois passam a me seguir, esperando algum agrado em forma de sal rs. Como estava sozinho e algums exemplares estavam bem alimentados e fortes, faço pequenos desvios da trilha consolidada para evitar qualquer tipo de atrito.

Depois de alcançar um dos pontos culminantes deste ponto da serra, inicio uma forte descida, com muito cascalho, até o fundo do vale do Córrego do Barbado. O mais fácil é descer pelas trilhas, aparentemente, menos utilizadas à direita, para que seja mais fácil transpor um pequeno afluente que existe na chegada ao fundo do vale. Desci pelo caminho mais batido e, na preguiça de dar a volta, desço um pequeno barranco para cruzar o referido afluente.

No fundo do vale a caminhada é relativamente plana e sem dificuldades. Passo por mais um afluente e, às 8:41, chego ao Córrego do Barbado, depois de percorrer 7.5km. Nos arredores há locais interessantes para acampamento e a travessia é simples pelas rochas emersas do leito.

Do outro lado a trilha dá uma apagada, mas vou seguindo no sentido sudeste por caminhos discretos, me aproximando de uma grande voçoroca. Logo me aproximo de mais um cerradinho e seu emaranhado de trilhas, já que há muito gado na região. Vou seguindo no sentido sul, evitando as trilhas que seguem para a parte mais baixa do terreno. Avisto uma casinha relativamente próxima, próximo a um capão de mata no pé da serra. Seria o tal Retiro do Barbado?

Por campos vou descendo, já próximo ao Rio Preto. O cerradinho dá lugar, novamente, aos campos, e logo chego ao entroncamento com a trilha que vem da região de Fechados. Já com visual do Rio Preto, vejo algumas pessoas na outra margem, fazendo um alongamento em grupo.

Às 9:30 chego ao Rio Preto, mais uma vez. Cruzei no sentido inverso no mês de julho, quando da travessia Extrema x Fechados. Volume um pouco maior, já reflexo das chuvas. Desta vez não foi possível cruzá-lo sem tirar as botas. Aproveito a deixa para dar um mergulho no rio. O grupo que fazia o alongamento se aproxima do rio, na iminência de cruzá-lo. Tinham acampado por ali e estavam seguindo para Fechados, numa travessia que tem se mostrado cada vez mais popular, graças ao esforço do amigo Chico Trekking.


O grupo, no entanto, se mostrou um pouco verde, digamos assim. Tinham acampado por ali, mas parece que não tiveram curiosidade de verificar por onde seria a travessia do rio. De forma que todos calçaram suas botas e tênis, mas poucos metros depois do acampamento tiveram que descalçar para atravessar o Rio Preto. Eu que não tinha nada com isso, apenas observada enquanto me refrescava nas águas relaxantes do Espinhaço.

Às 10:07 deixei o Rio Preto, tomando uma trilha discreta que rumava para o sul, à esquerda dos afloramentos rochosos. Adiante a trilha fica mais batida e se embrenha num capão de mata, um dos poucos trechos sombreados da rota. Como não podia deixar de ser, a sombra é bem curta e logo acaba. Mantenho a esquerda nas bifurcações e rapidamente estou no Córrego dos Piões. Um pouco antes, no entanto, encontro dois cachorros na trilha, um estava escondido no meio do capim e outro perdido em meio ao cerrado, mas não parava de latir em minha direção.

Num pulo atravesso o Córrego Piões e passo pela sede da Fazenda Pinhões da Serra. Mesmo sendo feriado, não vi ninguém por lá, nem nas proximidades. Sigo em direção a um afluente do Piões, próximo à cachoeirinha do Moinho. Aproveita a sombra e o ambiente mais fresco do afluente para fazer uma parada prolongada e “almoçar”.

Depois de quase 30 minutos, retomo a caminhada. Agora teria, novamente, um trecho inédito pra mim. Ao invés de seguir mais para leste, em direção à Extrema, continuo no sentido sul, por uma trilha bem marcada que vai acompanhando o leito do Córrego Piões. A caminhada segue em nível até um velho rancho, onde passei às 11:44. Não há muito sinal de que o local seja frequentado e a casinha está bem prejudicada.

Após o rancho pego uma trilha velha no sentido sudeste, é uma subida acentuada com muitas pedras soltas, que passa um pequeno capão de mata da encosta. Rapidamente chego ao patamar superior da serra e a trilha torna a ser por um relevo mais suave. Estou novamente bem próximo do Córrego Piões. Vou seguindo pela trilha consolidada até encontrar a passagem que cruza o córrego, à direita.

Do outro lado saio em um trecho de campos e alguns animais pastavam próximo ao afluente dos Piões. Depois de cruzar o riacho tem início um aclive mais pronunciado e longo, que me leva ao ponto culminante da travessia, onde o GPS marcou 1.393m. Há algumas bifurcações durante a subida, mas vou mantendo a direita até próximo ao cocoruto do morrote. Neste ponto as trilhas marcadas seguem principalmente para leste, em direção a um rancho próximo; então mantenho a direção sul-sudeste, atravessando campos sem trilhas consolidadas, até reencontrar a trilha próximo a uma tronqueira.

Com uma bela visão de todo o entorno, passo ao lado de uns afloramentos rochosos com algumas vellozias, e início a descida rumo ao Ribeirão do Inhame, um afluente do Córrego Cachoeira, que corre no patamar inferior da Serra do Cipó. A descida é tão longa quanto a subida, mas sempre com ótimos visuais, principalmente para o conjunto de serras ao sul.

Vista desde o patamar superior da Serra do Cipó
Às 13:10, com 20.5km percorridos, chego ao fundo do vale. No Ribeirão a água descia pelos afloramentos com volume razoável. Fiz uma rápida parada no local, já que não havia nenhum ponto sombreado próximo.

Passo pela tronqueira na saída do Ribeirão do Inhame e continuo na mesma direção, agora por uma trilha discreta entre afloramentos rochosos. Cerca de 400 metros após o ribeirão, intercepto um caminho consolidado que segue na transversal, então viro à esquerda e começo a subir. O caminho da direita, que desce, leva em direção ao povoado dos Inhames, mas passando pela Fazenda do Dante, local não muito recomendado (mais detalhes AQUI).

Subo algumas dezenas de metros, passando entre afloramentos rochosos, e vou derivando para a direita, novamente em direção ao sul. Vou seguindo por uma trilha bem discreta, que vai acompanhando uma pequena drenagem, em ligeiro aclive. Depois de algumas centenas de metros a trilha discreta dá uma apagada, mas mantenho o rumo em um terreno bem tranquilo de caminhar.

Mais a frente intercepto a trilha mais consolidada que desce a serra em direção ao Córrego do Quartel. Tem início uma descida bem acentuada e com muito cascalho, que leva a um patamar inferior da Serra do Cipó. A trilha passa bem próxima à “quina” da serra, proporcionando um belíssimo visual. Longe dali, mais ao norte, é possível ver a sede da Fazenda do Dante, onde foi impedido de prosseguir uma vez.

A descida é bem exigente, mas vou procurando as melhores passagens e, com certeza rapidez, chego ao pé da serra. Os afloramentos rochosos e o terreno cascalhento dão lugar a um terreno estável, um misto de cerrado, campos e capoeira. São muitas as trilhas por aqui, já que é uma região de pastagem e, até há alguns anos, de passagem de tropas. Escolho um caminho que havia visualizado durante a descida da serra, que me leva próximo ao leito do Córrego do Quartel. Depois fui seguindo por trilha que não me levassem diretamente ao córrego, mas que seguissem paralelos a ele, de forma que eu fizesse a travessia no local planejado.

Com 25.1km de pernada, às 14:33 cruzo os dois braços do Córrego do Quartel, local que havia planejado acampar. Durante o dia havia pensado muito na situação e, como cheguei cedo, decidi dar prosseguimento à jornada, evitando assim acampar nas terras do Dante. Depois do córrego a trilha segue por relevo suave, rapidamente chego a um capão de mata isolado em meio aos campos. Aproveito a rara sombra para descansar um pouco e aliviar as pernas, que já estavam sentindo a quilometragem acumulada.

Rumando para o sul, a trilha segue em ligeiro aclive, sem qualquer dificuldade. Cruzo o morrote e enfrento mais uma descida cascalhada, estou entrando no vale do Ribeirão Soberbo. Às 15:33 cruzo um pequeno afluente do Soberbo, aproveitando para coletar um pouco de água no local. 20 minutos mais tarde chego à Cachoeira do Rubinho, onde descido fazer mais uma breve parada.

Embora a queda final não seja das maiores, a Cachoeira do Rubinho possui um poço enorme, tão grande quanto o Poço do Soberbo. O local é excelente para banho, no entanto, apenas apreciei a vista daquela tarde ensolarada.

Vale encaixado nas proximidades do Poço do Soberbo

Saindo do Rubinho volto um pouco pela trilha, contorno os afloramentos rochosos e desço em direção ao pequeno afluente do Soberbo, que cruzei num pulo nas proximidades de um velho curral. Neste trecho final a trilha sem bem demarcada, embora denotando pouco uso, até próximo ao Rio das Pedras. Nas proximidades do rio é um trecho um pouco confuso, entre arbustos e pedras até chegar ao vau do Rio das Pedras, onde a travessia é feita com certa tranquilidade, com água na altura dos joelhos.

Na temporada de chuvas, o Rio das Pedras exige ainda mais atenção que o Rio Preto, pois é um curso d´água que sobe de nível com alguma facilidade. Até mesmo por esse motivo resolvi esticar a pernada até o Soberbo, pois uma forte chuva madrugueira (comum nesta época) poderia dificultar ou mesmo impedir minha passagem por lá.

Sem as botas e com chinelo nos pés, sigo alguns metros por uma trilha suja até encontrar a antiga estradinha do garimpo do Soberbo. Depois de um pequeno aclive, inicio uma descida sobre lajeados e pedras soltas que termina no Poço do Soberbo, onde cheguei às 16:49.

Para a minha surpresa, não havia ninguém acampando por lá, mesmo com o tempo bom que fazia no feriado. Armei a barraca próxima de uma das casinhas de pedra que existem por lá, talvez no mesmo local que havia montado em 2016 rs. O restante do dia foi descansar, lavar roupa, banho de rio e janta.

Neste dia caminhei 32.3km.

3º dia: Poço do Soberbo x Lapinha

A manhã foi de muita preguiça. Mesmo perdendo uma hora por conta do horário de verão que acabara de começar, descansei bastante, fiz o desjejum e tomei um bom banho de rio pela manhã. O céu estava repleto de nuvens, mas o sol também queria dar as caras, o que proporcionou um belo mormaço logo pela manhã.

De olho no ônibus que sai de Santana do Riacho às 17:00 e em uma carona até lá, deixei o acampamento no Soberbo às 11:26 do horário de verão. O mormaço estava implacável e a caminhada por aquela estradinha velha do garimpo, quase sem sombra e em aclive constante, prometia ser loooonga.

Camping Soberbo, foto de 2016, com capim mais alto

Em bom ritmo segui estradinha acima, cruzando o Córrego Fundo por três vezes, até chegar numa boa fonte de água às 12:23, depois de percorridos 3.8km. Aproveitar a sombra e água fresca para descansar um pouco e tentar esfriar o corpo com a água que descia pela serra. Que mormaço!

Depois de alguns minutos de descanso prossegui na caminhada, cruzei o Córrego Fundo pela última vez e cheguei ao rancho, com um belo gramado, duas casinhas e um curral. Também não havia ninguém por lá. Sem delongas tomei o rumo da estradinha, mas optei por seguir uma trilha que estava à direita dela.

A trilha afasta-se lentamente da estradinha, até que dá uma guinada para o oeste e para a subir uma vertente da serra. A subida é acentuada, com muito cascalho e alguns degraus. A medida que subo o calorão vai diminuindo e um vento contínuo vai refrescando o corpo. São mais ou menos 500 metros de aclive até que o terreno estabiliza e a trilha dá uma guinada para o sudeste, retomando a direção da Lapinha.

A caminhada agora é por um platô no topo da serra, a trilha apaga um pouco em meio a uma capoeira, mas há alguns totens sinalizando. Intercepto a estradinha do Soberbo adiante e sigo quase 3km por um terreno praticamente plano, com pouca variação altimétrica. Depois de cruzar a cabeceira do Córrego Fundo, pode onde escorria um pouco de água, a trilha dá uma guinada para o leste, passando por uma porteira de madeira.

Adiante, ao invés de seguir pela estradinha cascalhada, sigo em direção à cerca do terreno, à direita, onde havia uma tronqueira. Neste ponto a cerca foi remendada e reforçado de diversas formas, dificultando a passagem, mas com algum cuidado é possível pular uns mourões próximos a uma porteira velha, saindo numa estradinha precária.
Por essa estradinha, abandonada e muito erodida, sigo em declive, me aproximando dos sítios e fazendas da região da Fazenda Virgulino. Às 13:26 passo pelo pé de manga, depois de percorridos 10.5km, este é o local mais avançado, onde é possível ser resgatado por algum veículo.

Cânion por onde despenca o Rio das Pedras

Depois de passar pela porteira do pé de manga, surgem algumas caminhonetes retornando da região da Bicame e o motorista me oferece uma carona, que não fui capaz de recusar, ainda mais que uma chuva fina desatava a cair. Na caçamba da caminhonete e debaixo de um temporal, que caiu de repente, percorri os últimos dois quilômetros até o cotovelo, onde tentaria uma carona pra Santana do Riacho, a cerca de 10km dali.

O cotovelo é ponto obrigatório de passagem para quem deixa a Lapinha, já que há somente uma estradinha entre o vilarejo e a cidade de Santana do Riacho. Enquanto esperava uma carona a chuva caía, ora pesada, ora mais suave, mas molhando igual. Vários carros passaram por mim, alguns sinalizam que o veículo estava cheio, outros ignoravam completamente rs.

Depois de aproximadamente 40 minutos esperando, um Fiat Uno parou, mesmo sob chuva e com o carro cheio de coisa atrás. Era o Marcelo da Pousada DuBreu, que levava as roupas de cama e toalhas da pousada após o feriado na Lapinha. Conversamos sobre a Lapinha e ele me deixou em Lagoa Santa, de onde peguei o ônibus pra BH. Cheguei em casa no fim da tarde, bem antes do que se tivesse pegado o ônibus em Santana do Riacho, cumprindo assim mais uma travessia.

Neste dia andei 10.5km e consegui carona por mais 2km.

DICAS E INFOS:

Embora seja um trecho longo para três dias, a travessia possui dificuldade técnica moderada, é preciso ter atenção nas descidas acentuadas, nas travessias de rio, principalmente o Rio Preto e o Rio das Pedras, e nos trechos sem trilha consolidada. É altamente recomendável possuir boa experiência no transporte de cargueiras e na lida com acampamentos naturais.

Pontos de água espalhados ao longo da rota, de forma que não é preciso carregar mais de 1 ou 1.5L. No entanto, é bom se atentar para alguns trechos pouco mais longos sem oferta de água: da cabeceira do Córrego do Bicho até o vale do Córrego do Barbado e os quilômetros finais da travessia, após o rancho do Soberbo.

Para que o trajeto seja percorrido com tranquilidade, o recomendado é o formato 4 dias/3 noites. Porém, caso a logística seja feita de van, é possível encurtar a rota em aproximadamente 11.5k (9.2k do trecho inicial e 2.3k no final), tornando o trajeto mais tranquilo para 3 dias.

No período chuvoso é necessário se atentar para o nível dos dois principais cursos d’água da rota: Rio Preto (pouco após a metade) e Rio das Pedras (no trecho final). Chuvas persistentes ou uma tempestade noturna podem elevar bastante o nível desses rios e dificultar ou impedir a travessia. Se acampar perto desses cursos d’água, a recomendação é sempre cruzá-lo e acampar do lado em que a travessia prossegue. No caso de cheias, segurança em primeiro lugar: espere o nível baixar ou opte por uma rota de escape.

São várias rotas de escape ao longo do trajeto, mas o caminhante deve ter ciência que são trechos longos por trilhas ou estradinhas pouco movimentadas, que exigem várias horas de caminhada. Na altura das cachoeiras do Córrego do Bicho, uma opção é tomar a trilha para Cemitério do Peixe e seguir para Capitão Felizardo. Nas proximidades do Rancho do Adão as opções são seguir sentido Congonhar do Norte (leste) ou Fechados (oeste). Na Fazenda Pinhões da Serra também há saída para a região de Congonhas do Norte, espeficicamente o vilarejo de São Cruz dos Alves e Extrema. Na chegada ao vale do Córrego do Quartel existe uma saída para o povoado de São José da Cachoeira. Das proximidades do Poço do Soberbo em diante a saída mais óbvia é Lapinha da Serra e Santana do Riacho.

Por se tratar de uma região isolada, longe das cidades, é difícil obter sinal de telefone ao longo da rota.

Essa travessia não passa por unidades de conservação públicas, boa parte da caminhada é feita em áreas particulares. Por isso, pede-se: FECHE AS TRONQUEIRAS E PORTEIRAS POR ONDE PASSAR, LEVE TODO SEU LIXO EMBORA, NÃO FAÇA FOGUEIRAS, NÃO ENTRE NAS ÁREAS DAS CASAS SEM AUTORIZAÇÃO. O trecho entre o Córrego do Quartel e o Rio das Pedras é propriedade particular e o dono não costuma ser muito amigável com os visitantes. Evite ao máximo acampar neste trecho.

Existem boas áreas para acampamento ao longo da travessia. Não há qualquer tipo de infraestrutura para os montanhistas ao longo da rota. É uma caminhada feita de forma autônoma, levando material de acampamento e comida.

LOGÍSTICA:

Utilizando como referência a cidade de Belo Horizonte:
Embarque no ônibus da viação Pássaro Verde no terminal da Lagoinha (linha BH x Diamantina, diária com vários horários). Comprar passagem para “Trevo Camilinho” (disponível somente no guichê da empresa, valor menor) ou Gouveia (compra pela internet). Embarquei no carro das 23:59 e cheguei ao ponto de desembarque por volta das 04:20. É preciso ficar atento ao local de desembarque e avisar ao motorista, já que não se trata de uma parada convencional.

Do “cotovelo”, uma curva de 180º na estrada de acesso à Lapinha da Serra, o caminhante tem algumas opções: seguir a pé para Lapinha (+3k) ou Santana (+10k), contratar um serviço local de resgate com antecedência (não há sinal no local) ou esperar por uma carona (boa opção para finais de semana e feriados, caso seja uma ou duas pessoas).


Não há transporte coletivo regular entre Santana do Riacho e Lapinha da Serra. De Santana do Riacho sai um ônibus diário para Belo Horizonte, da viação Saritur. O ônibus sai no início da manhã, por volta das 06:00 (checar horário com a empresa). É possível que aos domingos tenha um ônibus extra a tarde (horário 17h, checar com a empresa).

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