23/08/2018

Travessia Capão x Lençois (via 21 e Fundão)

De todas as trilhas e travessias famosas da Chapada Diamantina, esta, talvez, seja aquela considerada a mais selvagem, difícil e menos percorrida. Era o caminho que me restava percorrer entre o Capão e Lençois, então lá fui eu.

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Mesmo sendo considerado uma trilha de alta dificuldade, com vários trechos técnicos, a travessia entre o Capão e Lençois pelas cachoeiras do 21 e do Fundão é a mais curta entre as duas localidades, com menos de 20km de extensão. Por isso, optei por realizá-la no modo light, em apenas 1 dia e levando somente uma mochila de ataque.

Foi um caminho difícil de levantar informações. Além dos dois tracklogs que juntei para me guiar nesta travessia, um relato no Mochileiros.com me esclareceu algumas coisas nas passagens mais complicadas, que seriam as descidas do 21 e do Fundão. Pessoalmente, os guias de Andaraí não conheciam nada por lá, e as histórias se limitavam ao espanhol que sofreu um acidente na região e foi encontrado morto um bom tempo depois.

Na noite de sexta aproveitei um trabalho na região de Lençois e fiquei por lá. Por volta das 19:30 cheguei à rodoviária e comprei minha passagem por pouco mais de R$10, o ônibus chegou em seguida. A viagem para Palmeiras foi um pouco mais lenta que a de costume e cheguei lá cerca de 1h depois. Na rodoviária o movimento era escasso, quase todo mundo que desceu do ônibus ficaria por ali mesmo, somente um rapaz e eu tínhamos ganas de ir para o Capão. Fretar um carro para duas pessoas era fora de cogitação, pois ficaria muito caro. Como já sabia que um rapaz cobrava barato pela dormida num quarto que fica acima da padaria/lanchonete que tem em frente ao terminal, estava tranquilo. Fui comer algo na praça central de Palmeiras, que fica a alguns minutos da rodoviária e mais tarde acertei a dormida por R$30.


Na madrugada seguinte, levantei antes das 5h e me arrumei rapidamente para esperar a van. Segundo informações, o ônibus da Rápido Federal que vinha de outra cidade chegaria bem cedo e a van sairia na sequência. Ledo engano. No frio do fim da madrugada fiquei mais de uma hora esperando, o ônibus apareceu depois das 5:30 e a van só foi sair beirando as 06:00. A viagem até o Capão levou cerca de 45 minutos e me custou R$15.

Desembarquei na região dos Campos, na parte alta do Capão, um pouco antes das 7. Céu limpo e sol brilhando, depois de uma boa temporada de tempo nebuloso na Chapada Diamantina. Subi a rua em direção à Associação dos Condutores de Visitantes do Vale do Capão, mais conhecida pela sigla ACV-VC. A sede estava fechada e no local não havia ninguém para dar notícia. Tratei logo de encher a garrafinha de água num bebedouro lateral e iniciar a trilha. Quanto mais cedo, melhor.


Às 07:05 deixei a ACV-VC e iniciei a subida da Serra da Larguinha, uma das poucas subidas dessa travessia. O aclive possui diversos degraus, é praticamente uma escada gigante com 1.600 metros de extensão. Ainda no começo da subida topei com uma pequena coral, que estava mandando um calango para dentro, logo pela manhã. Depois de observar por alguns minutos aquele café da manhã, continuei a subir.

Aproveitando o céu limpo, passei em dois mirantes que existem ao longo da subida. O primeiro com visual para os Gerais do Morrão, além do próprio Morrão (Monte Tabor); e o segundo com visual para o vale do Bomba e para a vila do Capão, ainda em profundo silêncio, somente com alguns latidos distantes. Às 7:53 chego ao final da subida e acelero pelo Gerais da Fumaça, que estava bem mais seco que quando passei fazendo a travessia pela Fumaça por baixo. Numa das nascentes do riacho da Fumaça, onde estão construindo uma passarela, não precisei tirar as botas para passar.

Às 8:40, depois de percorrer 5.3km, chego ao mirante principal no topo da Cachoeira da Fumaça. A queda já estava bem mais fraca que na semana anterior, mas ainda assim caía uma boa quantidade de água. A cachoeira da Fumaça tem essa peculiaridade pois as nascentes estão próximas da queda de quase 380 metros de altura. Como é pequena a quantidade de água coletada na região do gerais, a cachoeira seca rapidamente.

Fiquei um bom tempo lá no mirante, observando as formações e a água caindo. O tempo lá no alto continuava bom, somente com algumas nuvens mais afastadas, na região da Serra do Bode e vales do Capivara e do Capivari. Depois de 45 minutos de contemplação deixei o mirante da Fumaça e tomei uma trilha discreta, no rumo noroeste. Fui me aproximando do riacho da Fumaça e, ao chegar nele, desci por uma pequena fenda, avancei alguns metros rio acima e tomei uma saída à direita, sem cruzar o riacho. Adiante a trilha dá uma guinada para esquerda e segue no rumo noroeste, avançando pelos gerais.

A trilha é bem discreta, em alguns pontos é difícil definir se estou na trilha ou somente num trecho sem vegetação. Neste ponto conta a experiência em seguir trilhas e o manuseio do GPS, para verificar a direção correta. Algumas setas aparecem e a trilha vai ficando mais fácil de ser percebida, embora ainda continue discreta pelo gerais. Mais a frente, ao cruzar uma drenagem, percebo que estou no caminho certo pois a vegetação mais espessa possuía uma passagem.

No gerais a vegetação predominante é típica de caatinga, ou savana, de uma forma geral. Em alguns pontos é preciso cruzar pequenas matinhas, onde alguns arbustos com espinhos dão as caras. Nesses momentos senti falta do facão, pois normalmente os galhos com espinhos caíram sobre a trilha, impedindo a passagem. Confesso que bateu um pouco de arrependimento, pois havia levado o facão pra Lençois, mas preferi deixá-lo no carro.

Depois de avançar bem pelo gerais, chego a um ponto em que havia uma seta no chão indicando para a esquerda. Tomo a direção indicada, mas a trilha vai ficando cada vez mais difícil de perceber e vou saindo bastante do rumo desejado. Retornei à seta que me orientou e percebi que havia uma outra seta desenhada também, só que mais fraca, indicando para seguir adiante. O caminho à esquerda se trata de um retorno ao Capão, ou um atalho para quem deseja chegar a este ponto sem passar pelo mirante da Fumaça.

Pouco mais de 350 metros depois dessa primeira bifurcação importante, encontro uma segunda. Instintivamente decido seguir pela direita, cruzo uma pequena matinha e, quando saio do outro lado, percebo que estou indo na direção do mirante de frente da Cachoeira da Fumaça. Mais uma vez volto à bifurcação, mas agora continuo pelo caminho da esquerda. Vou me aproximando da entrada do Córrego Verde, nas nascentes da Cachoeira do 21.

Já próximo do acesso ao córrego, numa passagem entre dois arbustos, percebo a cabeça de uma serpente no chão. Ela estava lá bem de boa, só tomando o sol e nem esboçou qualquer reação com a minha presença. O jeito foi tomar impulso e pular cobra, ainda mais que a mesma tinha um tamanho considerável. Não consegui identificar se ela pertencia a algum dos gêneros peçonhentos da fauna brasileira, mas acreditei que não.


Às 10:17, depois de percorrer 7.6km, entrei no Córrego Verde. A princípio a trilha segue pelo leito do córrego e é preciso descer por alguns degraus. Muitos troncos e galhos caídos pelo caminho, principalmente nas margens. Quando a descida fica um pouco mais complicada, noto uma trilha pela margem esquerda e sigo por ela. Adiante a trilha cruza o córrego e continua pela outra margem até chegar num ponto de relevo mais estável. A trilha segue pela margem, com trechos eventuais onde é preciso pular as pedras do leito.


São cerca de 500 metros pelo interior do Córrego Verde até chegar num encontro de córregos, onde tem início a passagem pelo Córrego Branco. Esses nomes são em virtude das cores das rochas locais. Enquanto o Córrego Verde parece estar revestido por um tapete, no Córrego Branco as rochas estão “peladas”. E ledo engano quem acha que o Córrego Verde é mais escorregadio rs.

Vou avançando pelo pequeno vale, utilizando o leito e eventuais trilhas laterais que aparecem, e às 11:00 chego ao topo da Cachoeira do 21, depois de percorrer 8.9km. Do alto a visão é bem interessante, mas me preocupava o fato de não ter percebido a trilha que desce. Gastei alguns minutos procurando e cheguei a avançar perigosamente queda abaixo, pensando numa trilha mais arriscada. Como a situação por ali era complicadíssima, com risco real de cair e bater as botas, retornei ao topo e percebi um rastro de trilha que segue margeando o paredão à direita de quem chega ao topo. Ufa! Aí a descida foi tranquila pela direita da cachoeira (esquerda de quem sobe), mesmo com alguns trechos bem íngremes e confusos em meio à mata. Às 11:16 chego ao poço da cachoeira e fico por lá um tempo.


A cachoeira do 21 é conhecida por dificilmente ter água. Mesmo após as chuvas que caíram com frequência há alguns dias, somente uma mixaria de água descia pela cachoeira. Ao lado, um córrego que descia pela mata apresentava um bom volume, mostrando que a cachoeira do Fundão estaria em boas condições.

Depois de um breve descanso segui rio abaixo, desta vez caminhando no leito rochoso, com diversas lajes. Alguns poços aparecem e pequenas trilhas laterais surgem, mas logo acabam. Antes de chegar ao topo da Cachoeira do Fundão, percebo uma trilha discreta que sai pela margem direita do córrego e decido seguir direto por ela. Vou avançando pela mata e dou um susto num mocó que estava de bobeira por ali. Logo começa uma descida mais acentuada, com alguns trechos de escalaminhada para acessar o poço do Fundão. Então às 11:59, depois de percorrer 10km, chego ao poço da segunda cachoeira da travessia.


A cachoeira do Fundão apresenta uma altura considerável, estimam que tenha cerca de 100 metros. A queda se assemelha com a Cachoeira dos Cristais, em Andaraí, já que são vários degraus e não uma queda livre. O posicionamento da cachoeira não é dos melhores no quesito luz solar, já que ela está dentro de um cânion e posicionada de tal forma que o sol só consegue iluminar diretamente em algumas épocas do ano. Mesmo assim, teve que constar um bom banho no local.

Depois de uma bela ducha, seguida por um ótimo descanso, saio da cachoeira às 13:19, seguindo córrego abaixo sentido Lençois. Da Cachoeira do Fundão até o encontro com o Rio Ribeirão não há trilha definida, embora existam algumas passagens pelar margens, mas elas são discretas e algumas acabam subitamente. Mesmo com o leito escorregando horrores, decido seguir por ele, pulando as pedras e tentando não cair de cara no chão rs. O lado positivo é que o córrego corre “engrunado”, debaixo das rochas, desta forma não existem poços que atrapalham o deslocamento pelo leito.

Depois de percorrer mais de 3km pelo leito do rio, chego ao encontro com o Rio Ribeirão às 14:13. Este trecho também é um pouco confuso, principalmente para encontrar a continuação da trilha que sobe a Serra do Grisante em direção à Trilha das Mulas. Ao chegar ao Ribeirão, cruzo o rio e entro numa trilha na outra margem. Logo saio em um pequeno descampado, numa área que é utilizada como acampamento. Há uma trilha discreta que segue pela margem no sentido contrário ao do rio. É preciso avançar algumas dezenas de metros por ela e começar a subir a serra mais adiante, num ponto onde foi construído um totem de pedras para sinalizar.

A subida da Serra do Grisante é bem encardida, com uma inclinação muito forte no começo. São pouco mais de 650 metros serra cima até interceptar a Trilha das Mulas, que vem das cabeceiras do Rio Ribeirão. Às 14:49 chego ao encontroncamento, depois de percorrer 14.1km. A partir de agora o caminho se torna um passeio no parque, se comparado com os trechos anteriores da travessia. Depois de uma ligeira subida e de cruzar o topo da Serra do Grisante, tem início uma longa descida que termina somente em Lençois.

O trecho final, em franco declive, possui trilha bem consolidada, embora tenha o aspecto de suja. A partir do momento em que é possível visualizar Lençois é possível ter acesso ao sinal de telefonia móvel. Há também boa oferta de água, inclusive a possibilidade de banho em uma pequena ducha no meio da descida. A trilha “original” leva ao Hotel Portal de Lençois, mas já próximo da cidade é possível pegar algumas variantes e tomar o rumo do Serrano ou da Cachoeirinha.


Durante a descida cruzo com um casal que subia a serra, os únicos seres humanos que vi durante a travessia. Às 16:29, depois de percorrer 19.7km, chego à rua principal de Lençois, onde havia estacionado o carro, e finalizo a pernada.

DICAS E INFOS:

Esta é uma travessia exigente, tanto do ponto de vista físico como técnico. Possui uma dificuldade de navegação no trecho do Gerais da Fumaça, tendo em vista que a trilha é bem discreta. No trecho intermediário, da entrada no Córrego Verde até a chegada ao Rio Ribeirão, o desafio fica por conta do piso bastante irregular e pela falta de trilhas consolidadas, principalmente após a cachoeira do Fundão.

O trajeto pode ser feito em um dia com tranquilidade, desde que a caminhada se inicie cedo, de preferência por volta das 07:00. Ir de modo leve facilita na transposição dos obstáculos. Para os que pretendem realizar um pernoite na rota, parece que o melhor local para acampamento é na parte superior da cachoeira do Fundão.

Não há rota de escape no trecho intermediário desta travessia. Em caso de urgência ou emergência, deve-se avaliar se é mais vantajoso retornar ao Capão ou se dirigir para Lençois. Ressaltando que o topo da Serra do Grisante já possui sinal de telefonia móvel.

Há boa dispobilidade de água no caminho, principalmente no trecho intermediário entre o Córrego Verde e o Rio Ribeirão, portanto uma garrafa por pessoa é mais que o suficiemte.

Considerando o piso escorregadio no trecho que acompanha os córregos, é uma travessia recomendada para ser feita com tempo seco, mas de preferência após um período de chuvas na Chapada, pois assim é possível aproveitar melhor as cachoeiras e quedas d’água pelo caminho.

LOGÍSTICA:

Como é o normal de uma travessia, as extremidades da trilha estão separadas por uma distância rodoviária razoável. Neste caso, porém, todavia, a logística é relativamente simples.

Se estiver em veículo próprio/alugado, sugiro utilizar Lençois ou Capão como base. Fiz três travessias entre essas localidades e nas três deixei carro ou moto em Lençois, na rua mesmo. Fazendo a trilha no sentido proposto (Capão x Lençois), tome o ônibus da Rápido Federal de Lençois para Palmeiras. O ideal é checar no guichê se o ônibus entre na cidade de Palmeiras, pois em alguns horários ele só passa no trevo, que fica a 6km da cidade. Para quem deseja fazer esta travessia em um final de semana, uma sugestão é tomar o carro que passa por volta das 19:00 em Lençois.

A viagem para Palmeiras leva cerca de 45 minutos e custa pouco mais de R$10. Chegando a Palmeiras, são duas opções: fretar um carro ou tomar uma van. O carro é recomendável quando são pelo menos 4 pessoas, pois os motoristas cobram algo que varia entre R$120 a R$200, normalmente. Esses táxis geralmente ficam no terminal rodoviário de Palmeiras, aguardando a chegada dos ônibus.

Já a van tem horários todos os dias de Palmeiras para o Capão, a primeira sai por volta das 06:00, quando chega um ônibus da Rápido Federal na cidade. A viagem custa R$15 por pessoa (maio/2018) e leva cerca de 45 minutos. Caso opte pela van, lembre-se que não precisa descer até o centro da vila do Capão, basta descer na região dos Campos, no início da trilha para a cachoeira da Fumaça.

Se a ideia for utilizar transporte coletivo a todo momento, a viação Rápido Federal tem ônibus regulares para Palmeiras e saindo de Lençois. A empresa, normalmente, roda no eixo da BR-242, fazendo a ligação da capital Salvador com o extremo oeste baiano (região de Barreiras e Luís Eduardo Magalhães). As cidades-referência na região, para quem vem de outras partes da Bahia ou de outros estados, são Seabra e Itaberaba (a aprox. 55 e 190km de distância do Capão, respectivamente). De avião, a opção é descer no aeroporto de Lençois (voos quintas e domingos operados pela Azul) e tomar o ônibus da Rápido Federal no distrito de Tanquinho, que fica a poucos quilômetros do aeroporto.

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